Uma crônica técnica sobre vistorias para manutenção de garantias



Uma crônica técnica sobre vistorias para manutenção de garantias

O sonho da casa própria foi realizado e agora você, meu amigo, é o senhor proprietário do seu lar, do seu castelo.


Agora você vai poder assistir o futebol da quarta-feira e ainda chamar uns amigos para torcer. Sem baderna. Afinal, seus filhos devem dormir confortavelmente para estarem bem-dispostos ao colégio do dia seguinte, sua amada esposa o esperará com aquele cheiro que desde menina ela exala e que o deixou encantado por ela, como quem se encanta por feitiço.


Seu carro estará seguro na garagem, quando sua bela esposa por fim irá chamá-lo ao leito nupcial. As luzes apagarão, como num mimo de Hipnos, a noite será tranquila, com uma leve garoa a garoar o telhado...


E de repente, não mais que de repente (como diria Vinícius de Morais no soneto da Separação), o alarme do carro disparará!


Alto! Mais alto! De novo! Novamente! Atordoado, você procura o interruptor, ainda não deu tempo de se acostumar com a casa nova, titubeia pelas paredes; acende a luz.


O alarme toca!


- Meus Deus, se soubesse que esse troço era tão alarmante...

- Desliga isso! - Grita o vizinho.

 

Os meninos começam a chorar!

 

Você acha o hall da escada. Desce um degrau. Outro. O alarme para. Você se acalma. Consegue acender a luz da escada no interruptor da parte de baixo, no último degrau.

 

- Ufa. Coração quase sai da boca.

 

As crianças agora apenas soluçavam. A mãe estava a acalentá-las. Você percebe pela fresta de luz da escada que está tudo bem na garagem. Até sorri internamente. E fala baixinho: Ainda bem que não é ladrão.

 

- Amor - grita esquecendo que é madrugada. - Cadê a chave do carro?

O alarme toca, de novo! Mais alto que nunca.

 - Parece que a bateria do carro bebeu um energético!

 

Você desce o último degrau. Bufo! Bufo!


Escorrega e se esparrama pelo chão, numa queda quase cinematográfica sem esquecer de deixar as costelas na quina da escada.


As crianças estão aos berros! A casa encharcada. Você caminha para a porta da sala. Antes acha a chave na mesa da sala. Sabe aquelas mesinhas redondas? De vidro? Pois é. Você acabou de quebrar a mesa quando foi pegar a chave. Deu sorte! Nenhum arranhão.


Chegou na porta da sala. Foi acender a luz. Choque! Outra queda. Mas aqui não precisa se preocupar com o risco de morte advindo do choque. A instalação elétrica moderna da casa já desarmou todos os circuitos e você, agora, está literalmente no escuro. Mas sem choque.

 

As crianças estão aos berros.

 

O interfone toca e fica a tocar.

 

Você chega na porta, tudo alagado.

Por fim, o porteiro.

 

- Está tudo bem Dr. Roberto?

- Não, não sei o que houve, está....

- O senhor pode falar mais alto. Não consigo ouvir por causa do carro.

 

Você desliga o alarme. Suspira. O porteiro apruma a lanterna na sua cara. Você desvia. Pede emprestado.


Chega a primeira vistoria. Água por todo lado! Na sala, nos corredores, na cozinha, banheiro, na garagem. Sem luz. Tapetes encharcados.


- O tablet da Livinha! - Grita - Deixou no chão!

 

O interfone continua a tocar. Com a lanterna do porteiro, você atende, era o vizinho que você manda catar coquinhos. Desliga!

 

Segue até o quarto das crianças, estão todos bem. Assustados. Vai passar.

 

Você procura seu celular. Não acha. Até sabe onde está: Na mesa da sala; aquela que você quebrou.

- Será que caiu no chão?

 

Pede o telefone da esposa. Ligar para quem? Os números da construtora estavam na agenda do celular. Você lembrou! “Pego pela nuvem, no notebook” (eu sou o cara). Estava descarregado.

 

O Interfone toca. Lá de cima você pede para o porteiro atender. Era o Síndico. O Síndico é um homem solícito. Oferta a casa dele para que todos possam ir para lá e tentem um contado com a construtora. São 1h e 30min. Ninguém atende.
 

Mais alguns minutos e todos se arranjam pela sala alheia até o dia amanhecer.

 

Amanhece, você sai para o trabalho e sua esposa fica encarregada de ligar para a construtora.

 

A construtora designa uma equipe de manutenção com dois técnicos e um Engenheiro, o Napoleão; que prontamente comparece ao local e emite o diagnóstico, de imediato: Calha entupida!

 

 

E agora? Quem assume a responsabilidade? A Construtora, é claro. Só que no Manual de Uso do Proprietário havia uma cláusula:

 



Recorrendo ao item 3.2 do manual, você descobre:

 


;Agora, como diria em bendito ‘cearês’: Lascou!


 

Uma cláusula dessa deixa no prejuízo o proprietário que ainda pode ser cobrado pela assistência técnica emergencial.

 

Observe, meu caro, que esta situação se deve a um cenário específico: Uma casa nova, com oito meses de entrega, que teve seus sistemas danificados por um vazamento de não culpa construtiva. Mas e o código civil? O que diz?

 

(...)


Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

 

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito. (CCB)

(...)

 

Por lei, a responsabilidade do dano seria da construtora, mas observe um comparativo que o vou fazer com automóveis.

 

Imagine que você comprou um carro, não trocou o óleo na concessionária, trocou num posto de gasolina, o mesmo óleo. Tempos depois arguiu na concessionária a garantia de motor por um problema mecânico. O que acontece? Hein? Garantia negada.

 

Este mesmo entendimento está sendo levado para as edificações, onde o proprietário da obra nova fica obrigado a revisões periódicas para a asserção de garantia.

 

Mas voltemos ao nosso cenário.

 

O Dr. Roberto estar a discutir com o representante da construtora quanto ao prejuízo aduzido. A Construtora apresenta mais uma norma, a Norma de Desempenho, NBR 15575.

 

Ora, pela norma de desempenho a garantia do sistema estaria prescrita? A casa tem oito meses de entrega, mas seu habite-se tem cinco. O que vale? O habite-se ou o termo de recebimento do imóvel, também conhecido como termo de Entrega?

 

- Esse habite-se é uma enganação. - Dr. Roberto reclama já perdendo a compostura.

- Mas não é a ele que a sua garantia é vinculada. Os prazos contam-se a partir do Termo de Entrega, esta é a política da construtora — replica o representante. — O que neste caso o favorece.

- Então a construtora vai arcar com o meu prejuízo?

- Não. O Sr. Não fez a manutenção da sua edificação como o pactuado em contrato e na forma do manual do proprietário. Sua garantia é preclusa.

- Pois fique o Sr. Sabendo que vou procurar os meus direitos, vou à Justiça!

- Bem, — retruca o representante, — o senhor poderia me escutar um pouco?

- Posso. O senhor tem cinco minutos.

- O que negamos aqui ao senhor, não foi por prescrição, mas por preclusão. O senhor não fez a revisão da sua casa. Havia bolas de tênis na calha. Não podemos nos responsabilizar por imóveis negligenciados quanto às suas manutenções de ofício ou atos de terceiros. Mas o senhor tem todo o direito de buscar o Judiciário, assim como nós teremos todo o direito ao contraditório. Temos a intenção de compor uma negociação amigável, mas neste caso é nossa política que o senhor proponha o acordo.

- Há ainda um detalhe importante. - Interrompe o Engenheiro Napoleão que presenciava a história. Devido à gravidade das infiltrações é imprescindível que procedamos uma inspeção na sua residência para afastar o risco de outros sinistros, até mais gravosos, como um incêndio.

- Certo, mas isso vocês vão fazer? – Pergunta o Dr. Roberto.

-Podemos, mas há um custo.

- Ora, pois vão... E saiu batendo a porta, nitidamente indignado.

 

Nestes dias todos, dormiram sem luz e sem garantia de que outra enchente não trouxesse a eles os tormentos do dia anterior.

 

No terceiro dia, o zelador restabeleceu as luzes. No quarto dia, fizeram uma limpeza da calha, novamente pelo zelador do condomínio. No quinto dia, secaram os tapetes, limparam o chão e descartaram os utensílios danificados pela chuva. No sexto dia, a casa havia voltado à sua normalidade quase por completa, salvo por algumas manchas que já nem se conversava mais sobre o assunto.

 

No sétimo dia, como por ironia do destino, à noite, o Sr. Roberto, como de costume, foi brincar com os seus filhos e usou uma tomada de piso que ficava embaixo da bancada da sala para ligar o novo tablet...

 

No oitavo dia, sobre as cinzas da casa, a Engenharia foi chamada e a vistoria para asserção de garantias foi feita.

 

Resultado do laudo: Carangos e motocas!



Especialista em Engenharia Diagnóstica, Especialista em Avaliações e Perícias de Engenharia, Especialista em Gestão de Cidades e Meio Ambiente, Especialista em Políticas Públicas e Governabilidade, Graduado em Engenharia Civil