Competir ou cooperar: o dilema sem fim das relações internacionais



Competir ou cooperar: o dilema sem fim das relações internacionais

Uma rápida revisão histórica de nossa mais recente nova ordem mundial

Philippe H. Gidon


A competição e cooperação são dois pólos fundamentais que moldam o funcionamento de nossas sociedades e as formas de relacionamento adotadas entre elas. Em cada época histórica, contextos e narrativas tendem a enfatizar um ou outro lado da polaridade ao gerar matrizes que podem incentivar, em seu sentido mais amplo, uma tendência à paz ou à guerra. O estudo destas dinâmicas de relacionamento entre sociedades constitui o centro de atenções e pesquisas do campo acadêmico de Relações Internacionais (RI).


A história da humanidade poderia ser contada como uma série de “ordens” locais, regionais, continentais, e mundiais, na fase mais moderna de nossa evolução. Pode-se entender uma ordem mundial como uma megaestrutura, tanto formal quanto informal, por meio da qual uma sociedade ou um grupo delas exerce seu poder ao determinar modalidades específicas de convivência, sugeridas, negociadas ou impostas sobre a maior parte, senão totalidade das outras sociedades no globo terrestre. Tal dominância costuma ter certo êxito, do ponto de vista da nação ou grupo dominante até que eventos traumáticos, essencialmente crises profundas e guerras, provoquem uma mudança na liderança mundial e consequente oferta de nova ordem mundial pela parte vencedora do último embate bélico.


Assim, o ano 1945 marca o nascimento de mais uma nova ordem mundial. A proposta dos EUA, nova líder emergente, de cunho liberal, objetivava incentivar a adoção de comportamentos cooperativos em relação à postura mais competitiva típica da liderança imperialista europeia até aquela data. De fato, a teoria liberal em RI entende que a paz só pode ser alcançada e sustentada se forem adotados três intrincados pilares de convivência internacional. A nível econômico, pede-se uma abertura dos mercados que incentive as trocas comerciais, motor de prosperidade. A nível político, a implementação de regimes democráticos em cada nação seria uma garantia de postura pacífica. Enfim, a resolução de tensões e conflitos entre nações deve sair do campo de batalha para as mesas de negociação multilateral no seio de organizações internacionais.


Não por acaso, a criação da ONU e todas suas agências, os grandes ciclos de acordos comerciais no GATT e posteriormente na OMC,  a implementação de blocos econômicos ocorreram a partir desse momento histórico configurando a referida megaestrutura liberal, que, desde os anos 90, rege as condições de relacionamento entre sociedades à nível mundial, em sua versão conhecida como neoliberal.


O efeito foi notável, especialmente para o comércio internacional, apesar das limitações iniciais devidas ao contexto geopolítico de guerra fria. O desenvolvimento econômico, mesmo pontuado por crises, alcançou níveis sem precedentes, com oportunidades múltiplas. Primeiramente, a população mundial passou de 2,5 bilhões em 1950 a quase 8 bilhões em 2020. Tal crescimento populacional inédito na história humana significou o surgimento massivo de novos consumidores que proporcionaram inúmeras fontes de criação de riqueza. Segundo, ainda assim pouco lembrado, os EUA garantiram em todo esse período a segurança militar para circulação de mercadoria ao redor do mundo, essencial para o comércio mundial. Enfim, novas tecnologias em transporte e comunicação propulsionaram a internacionalização das empresas em cadeias globais de valores. O efeito conjugado destas tendências favoráveis, aliado à megaestrutura liberal, embasou o fenômeno genericamente designado como globalização.


O fim da guerra fria consolidou a posição de liderança norte-americana que, em 1990, iniciou a divulgação do modelo neoliberal, promovendo a universalização do respeito aos pilares da visão liberal com o objetivo anunciado de garantir a prosperidade e paz mundial. A competição é forte, todavia, enquadrada em uma mega estrutura supranacional de negociações destacando posturas de abertura e cooperação. A onda neoliberal foi notadamente bem aproveitada pela China. Sua entrada na OMC em 2001 marca o início de uma expansão internacional impressionante, a ponto de se tornar o maior exportador mundial, já em 2009.


A crise de 2008 constitui um ponto de inflexão na hegemonia norte-americana, ao revelar excessos e irresponsabilidades de certos atores políticos e econômicos. Apesar de uma criação recorde de riqueza, o modelo falhou ao gerar desigualdades patentes nas sociedades e entre sociedades, que decepcionaram e geraram severas críticas. A megaestrutura neoliberal passou a ser alvo de crescentes rejeições na última década. A China liderou o movimento de contestação, aproveitando suas forças econômicas e financeiras para promover um modelo alternativo. A rivalidade entre o modelo de sociedade democrático-liberal norte-americano e o modelo autocrático-estatal chinês se concretiza a partir de 2018 com o inicio da guerra comercial entre as duas potências.


Um novo ciclo pluridimensional de competitividade surgiu, portanto, em RI. A pandemia só exacerbou as gritantes disparidades de visão daquilo que seria um mundo mais “apropriado” para os humanos no planeta. O hegemon norte-americano foi desafiado por um émulo, chamado China, com condições para perturbar a ordem atual e propor sua nova ordem mundial. Tais momentos são permeados de incertezas, inseguranças e consequentemente, agressividade, seja para defender o modelo ou derrubá-lo


Há, todavia, um aspecto inédito nesse período de acirrada competição. As mudanças climáticas e suas consequências para a humanidade constituem uma urgência absoluta para sublimar as diferenças e cooperar senão na resolução, minimamente na atenuação dos efeitos de nossa obsessão coletiva por poder e riquezas. Seremos capazes de verdadeiramente reinventar nossas dinâmicas de relacionamento ou deixaremos os velhos reflexos competitivos dominar a agenda das RI, correndo o risco de guerras traumáticas surgirem novamente na história humana em nome de mais uma tradicional nova ordem mundial?


Pós-Graduação