Yarkon Cemetery, Tel Aviv, Israel. Created by Eli Anderson (Overview - ArchDaily//Reprodução)
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Memento mori é uma antiga expressão em latim que significa “lembre-se de que você é mortal”. Ao contrário do que parece à primeira vista, os romanos a usavam não para representar uma visão fatalista da morte, mas sim, como uma forma de valorização da vida.
Alguns séculos depois, chegando ao nosso contexto atual, quando o mundo atinge a aterrorizante cifra de 2 milhões de mortos em decorrência da pandemia de Covid-19, o memento mori está mais presente do que nunca.
Reforçado pela trágica realidade, este artigo se dedica a um passeio – histórico e simbólico – por estes espaços que são a materialização do estado implacável da nossa finitude.
Cimetière parisien de Pantin, Paris, França. Created by @dailyoverview, source imagery: @geomnimappros (Foto: ArchDaily Brasil/Reprodução)
Os cemitérios são vistos como lugares que acolhem diferentes identidades, representando uma cultura. Eles são, sobretudo, lugares de memória ancorados na experiência espacial, temporal e corporal fomentada pelo local. Não são apenas o descanso do corpo, mas um lugar de ação onde o tempo da morte é processado, onde o próprio morto ganha um espaço social no qual o acontecimento ritualístico substitui o biológico. [1]
Para muitas culturas, os cemitérios são lugares sagrados que requerem uma conduta específica ao serem percorridos. Uma paisagem silenciosa que implica em uma preparação e uma mudança de postura quando se cruza seus portões e é, justamente por isso, que o conhecido filósofo francês Michel Foucault os considera como espaços heterotópicos.
Como forma de contextualização, a palavra heterotopia vem da junção de hetero (diferente, outro) e topos (lugar). É um termo empregado na medicina e na biologia desde 1920, para se referir à formação de tecidos orgânicos em lugares não usuais, que não interferem no funcionamento e desempenho dos órgãos nos quais se desenvolve. Seguindo esse conceito, os cemitérios seriam considerados, portanto, espaços que escapam de classificações ordinárias, exercendo uma função de desvio, deslocando as nossas experiências habituais e instigando uma atmosfera peculiar, mesmo estando inseridos dentro de um contexto urbano. [1]
Cemitério em Guangzhou, China. Photograph by @nk7, found on @fromwhereidrone (Foto: ArchDaily Brasil/Reprodução)
Porém, antes mesmo desses lugares fazerem parte da paisagem das cidades, se tornando um elemento caracterizador do espaço urbano, tal qual conhecemos hoje, existiam outras maneiras de celebrar e enterrar os mortos. Muitos estudos comprovam que desde a era neolítica já havia a preocupação com os cadáveres que, por sua vez, eram colocados em cavernas fechadas por uma rocha. Foi apenas séculos mais tarde, com o avanço do cristianismo, precisamente até o final do século XVIII, que os cadáveres passaram a ser enterrados próximos ou no interior das igrejas, representando principalmente a continuidade espiritual que se desejava no além vida.
Vale ressaltar que, é neste período, como Foucault mesmo afirma, que se desenvolve o que ele chama de “medo urbano”, uma angústia generalizada diante da cidade que implicou no início da reconfiguração dos cemitérios. Havia um medo das oficinas e fábricas que estavam sendo construídas, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais, medo das epidemias urbanas e, principalmente, dos cemitérios que, além de se tornarem cada vez mais numerosos, invadindo pouco a pouco a cidade, acreditava-se que eles também representavam um foco de contaminação de doenças epidêmicas. Foi quando nasceu a “obsessão da morte como doença". São os mortos, supõe-se, “que trazem as doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos bem ao lado das casas, bem ao lado da igreja, quase no meio da rua, é essa proximidade que propaga a própria morte”. [2]
Esses inúmeros pequenos pânicos que atravessavam a vida urbana das grandes cidades do século XVIII cobraram, por sua vez, políticas sanitárias envolvendo a remoção dos cemitérios para a periferia das cidades. Ou seja, se inicia um processo de análise desses locais urbanos que poderiam provocar doenças, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos para que as primeiras grandes emigrações de cemitérios para a periferia da cidade acontecessem. Nesta época surge o cemitério individualizado, isto é, o caixão individual, as sepulturas reservadas para as famílias, onde se escreve o nome de cada um. Um modelo consolidado principalmente a partir do século XIX quando, como Foucault afirma, “cada indivíduo teve direito à sua caixinha para sua pequena decomposição pessoal”. [2]
Panteón Civil San Nicolás Tolentino, Cidade do México. Drone por @dronerobert (Foto: ArchDaily Brasil/Reprodução)
Neste contexto, surgem nas periferias das cidades “um verdadeiro exército de mortos tão bem enfileirados quanto uma tropa que se passa em revista. Pois é preciso esquadrinhar, analisar e reduzir esse perigo perpétuo que os mortos constituem. Eles vão, portanto, ser colocados no campo e em regimento, uns ao lado dos outros, nas grandes planícies que circundam as cidades” [2]. A partir desse momento se instaura o cemitério do tipo monumental, com grandes construções repletas de simbolismo em cruzes, altares e outros elementos religiosos. Um lugar que representa também o status da família e reforça o legado e memória deixados pelo ente querido.
Apesar dessa tipologia de cemitério ter persistindo por muitas décadas, recentemente é possível notar uma mudança de rumo quanto a esses equipamentos urbanos, tanto na criação de novas estratégias para se apropriar de antigos cemitérios - que já não estão mais nas periferias das cidades -, quanto nas maneiras de projetar e criar novos espaços como estes.
Springvale Botanical Cemetery, Victoria, Austrália. Created by @dailyoverview, source imagery: @nearmap (Foto: ArchDaily Brasil /Reprodução)
Hoje em dia, muito tem se falado sobre os cemitérios-parques que ganham destaque e apontam para a elaboração de cemitérios cada vez mais secularizados, onde não se encontram resquícios de símbolos religiosos. O próprio conceito de cemitério e a visão das pessoas que frequentam o local vem mudando, sendo possível perceber a intenção e o desejo de assumir esses amplos espaços como parques públicos onde se oferece uma variedade de funções importantes para socialização e recreação. Uma mudança de postura que desmistifica a fatalidade da morte e – por que não – reforça o memento mori de cada visitante.
O Congressional Cemetery de Washington nos EUA, por exemplo, passou a incluir em sua programação atividades de lazer como ioga, degustação de vinho, cinema ao ar livre, caminhada guiada, entre outros. Segundo os organizadores, suas atividades chegam a atrair cerca de 45 mil pessoas por ano. Aqui, vale a também reflexão de que essa mudança de paradigma reflete, principalmente, no modo como encaramos a própria cidade, mostrando que talvez estejamos mais interessados em de espaços de lazer do que de culto.
Cementerio de Nuestra Señora de la Almudena, Madri, Espanha. Created by @overview Source imagery: @maxartechnologies (Foto: ArchDaily Brasil / Reprodução)
Nessa breve reflexão sobre a história e formação dos cemitérios ao longo dos séculos é possível perceber o quanto seus simbolismos, formas e inserção no tecido urbano contam também sobre a nossa própria história como civilização. De pequenas lápides no entorno das igrejas, intrinsecamente relacionadas ao culto religioso, a quarteirões milimetricamente alinhados e afastados das cidades, até os modelos mais recentes, como os cemitérios-parque e outros formatos tais quais espaços de cremação e usinas de compostagem de cadáveres (que refletem principalmente nossa atual preocupação ambiental), cada modelo alinhado com as urgências e modos de viver de sua época.
Referências bibliográficas
1. FUCHS, Felipe. Espaços de cemitério e a cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado, FAU-USP. São Paulo, 2019.
2. FOUCAULT, Michel. De espaços outros. Publicado pela revista francesa Arquitetura /Mouvement / Continuité. Paris, 1984.
3. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.
Fonte: