(Foto: Ricardo Giusti/PMPA - Caos Planejado/Reprodução)
O colapso é iminente. A pandemia atingiu em cheio nosso já fragilizado sistema de transporte coletivo e ameaça a mobilidade da população das grandes cidades brasileiras.
Sumário executivo
O sistema de transporte coletivo nas grandes cidades brasileiras já estava em crise anterior à pandemia do coronavírus. Operadores de transporte viram a demanda de passageiros cair gradualmente ao longo das últimas décadas, em um cenário envolvendo múltiplos fatores como: políticas urbanas incentivando o uso do transporte individual; espraiamento urbano, perdendo ganhos de escala no atendimento de periferias; congestionamentos crescentes; rotas cada vez mais defasadas em relação aos padrões de deslocamento das cidades; a exigência crescente de transferências/baldeações nas rotas realizadas pelos passageiros; a depreciação das frotas e da qualidade de serviço; o aumento da renda da população, com a adoção de alternativas como o automóvel individual, a motocicleta e, ainda, serviços de transporte individual por aplicativo; e, acima de tudo, tarifas de transporte coletivo cada vez mais altas.
A pandemia do coronavírus exacerbou essa tendência em um grau significativo, com uma queda abrupta na demanda pelo transporte coletivo. Em nota publicada em abril de 2020, a Associação Nacional de Empresas de Transporte (NTU) afirmou que “A redução média identificada foi da ordem de 80% na quantidade de passageiros transportados. Estima-se que em todo o país, 32 milhões de passageiros deixaram de ser transportados diariamente.”
Além das medidas exclusivamente ligadas à higiene, como a exigência do uso de máscaras pelos passageiros e a circulação com janelas abertas, diferentes medidas foram tomadas em relação à operação, desde a restrição tanto do número de passageiros por veículo, impactando de forma ainda mais negativa na sustentabilidade operacional, assim como a eliminação temporária das gratuidades e a redução do número de linhas e da frequência de ônibus em circulação, na tentativa de aliviar os custos operacionais durante o período de pandemia.
Anterior à pandemia, apesar da indicação de insustentabilidade financeira e operacional do modelo de transporte coletivo adotado em grandes cidades brasileiras, havia poucas discussões abrangentes em relação ao redesenho do sistema.
Desde as “Jornadas de Junho” de 2013, quando a crise se tornou mais evidente, vieram à tona do debate público a sugestão de subvenção ou municipalização total do sistema, ilustrada pelo Movimento Passe Livre, assim como diferentes alternativas de subsídios, sejam eles subsídios operacionais cruzados ou subsídios públicos de outras fontes de arrecadação. Este plano visa trazer à tona uma discussão sobre a reestruturação ou redesenho do sistema, até agora incomum no debate público
A situação emergencial do coronavírus gerou uma crise nos sistemas de transporte coletivo de diversas cidades do mundo e agravou profundamente a sustentabilidade do sistema nas grandes cidades brasileiras. Isso levou, no curto prazo, à reduções operacionais em múltiplas cidades de forma a tentar manter a sustentabilidade operacional, prejudicando ainda mais a qualidade do serviço e, em alguns casos, o risco à saúde dos passageiros ao manter altas taxas de ocupação. Paralelamente, operadores concessionários negociam pacotes de salvamento financeiro de forma a permitir a continuidade dos serviços de transporte público nas cidades.
Mudanças estruturais no sistema de transporte brasileiro são imprescindíveis dado que, diferente de países desenvolvidos com situação financeira mais equilibrada, cidades brasileiras já enfrentavam graves problemas fiscais antes do início da pandemia.
A resolução exclusivamente financeira de um sistema que já estava à beira do colapso se torna inviável a longo prazo, para não dizer também a curto e médio prazo em se tratando de recursos públicos municipais. É neste intuito a proposta de redesenho do sistema de transporte público, buscando sua sustentabilidade financeira operacional, cujos conceitos são aplicáveis a grandes cidades brasileiras que se situam em crise semelhante à descrita acima.
É importante destacar que, dado o momento de negociação emergencial de pacotes de salvamento entre empresas e municípios, abre-se uma janela de oportunidade única para repensar o sistema de forma estrutural.
O plano sugere, resumidamente, as seguintes medidas:
1. Otimização do uso da via
Otimizar o uso das vias eliminando vagas de estacionamento em vias públicas e criando taxa de congestionamento, visando a melhoria do fluxo de tráfego, redução dos tempos de viagem e da pontualidade dos serviços de transporte coletivo na cidade, resultando também na melhoria da qualidade do ar para a população;
2. Integração com transporte ativo
Integrar a rede de transporte coletivo de massa com o transporte ativo, facilitando e aumentando o acesso dos usuários à rede que, principalmente com a complementaridade do uso da bicicleta, pode aumentar significativamente a área de abrangência populacional de estações e paradas de ônibus, principalmente em periferias urbanas;
3. Incorporação e regulamentação do transporte coletivo alternativo
Incorporar, regulamentar e fiscalizar o transporte coletivo alternativo, como vans e microônibus de operadores independentes, de forma a criar novas alternativas ao automóvel individual que cubram áreas periféricas com maior eficiência e dinamismo, complementando o transporte coletivo de massa, que operaria nos corredores de maior fluxo;
4. Novas licitações
Novaslicitações dos corredores de transporte coletivo de massa sob novas bases: redesenho de rotas baseando-se em dados atualizados de origem e destino; estabelecimento de metas contratuais com metas operacionais claras; separação da licitação entre fornecimento de veículos e operação do sistema; extinção do posto de cobrador e substituição pela modalidade de pagamento através de cartão eletrônico e/ou aplicativo de celular; descontos em horários fora de pico de forma a equilibrar a demanda de usuários no sistema e revisão das gratuidades de forma a evitar subsídio cruzado regressivo.
Os passos descritos acima refletem medidas a serem realizadas no período pós-pandemia, em um cenário de “retorno à normalidade” entre final de 2020 e 2022 e que não requerem investimentos significativos pelas prefeituras, mas principalmente revisões regulatórias e contratuais existentes pelo Executivo, pelo corpo técnico municipal e, em alguns casos, legisladas através da Câmara Municipal.
O objetivo das medidas é criar um desenho de gestão que permita maior sustentabilidade do sistema e que alinhe os incentivos dos operadores aos objetivos de mobilidade urbana da cidade. A partir da racionalização sugerida, a sustentabilidade econômica-financeira das operações de transporte se torna mais viável.
Financiamento público
A utilização de recursos públicos para financiar o transporte coletivo não foi considerada neste plano de forma a evitar a perpetuação de um sistema sem critérios para a subvenção de concessionárias de transporte, que hoje garante seu lucro operacional independente da qualidade de serviço.
Se o sistema é desenhado de forma onde a ineficiência e a falta de qualidade pode ser recompensada com subsídios sempre que necessário, os incentivos operacionais nunca estarão alinhados. Embora operações possam ter um período de sobrevida através de subvenções públicas, tal estratégia estritamente financeira não ataca os problemas de qualidade e eficiência, apenas postergando seu enfrentamento.
Fatores não considerados
Também não foram consideradas medidas de reestruturação do planejamento urbano municipal, de extrema importância mas de lento impacto no resultado operacional no sistema de transportes coletivo. Medidas referentes a outros modos de transporte, principalmente o transporte ativo, como o uso da bicicleta ou o transporte a pé, foram tratados sob a ótica da sua integração e complementaridade com a rede de transporte coletivo.
Ainda assim, a priorização ao transporte ativo permanece uma política de transporte indispensável para as cidades não apenas no longo prazo mas também no curto prazo, dado que geram outras externalidades positivas, permitem modos seguros de transporte do ponto de vista de exposição ao COVID-19 e são formas importantes de adaptação imediata dos espaços públicos em meio à pandemia.
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