(Foto: Caos Planejado/Reprodução)
Muros
altos, cercas elétricas, câmeras de segurança… A busca por proteção da
violência urbana trouxe grandes mudanças
para a Arquitetura e Urbanismo das cidades brasileiras. Mudanças que em
muitos casos aumentaram a sensação de insegurança nas ruas.
A partir da segunda metade do século XX, o Brasil ficou
reconhecido mundialmente pela insegurança
nas cidades. Desde então, o problema se intensificou, com taxas de
homicídio bastante elevadas — comparadas, em muitos casos, a países em guerra.
Em 2018, 17 cidades brasileiras constavam entre as 50 cidades mais perigosas do
mundo.
Esse cenário mudou a
arquitetura e Urbanismo das nossas cidades. Os bangalôs com muros
baixos, por exemplo, passaram a ser uma exceção. A população, sobretudo de
classe média-alta, passou a buscar a proteção da violência urbana em
verdadeiras fortalezas. Em áreas periféricas e de baixa renda de muitas cidades
o padrão já se repete, com cercas e
muros fechando as residências unifamiliares das ruas.
Além disso, outros elementos podem ser destacados, como os
conflitos em favelas, controle urbano de milícias e a estagnação e abandono de
bairros. Contudo, algumas experiências
em outras cidades pelo mundo podem nos guiar para um futuro diferente para
a realidade urbana das cidades brasileiras.
Conflitos
em favelas
“No Brasil, discute-se ‘favela’, tal como surgiu no Rio de
Janeiro no final do século XIX, é uma construção original em si, ou se é
originária dos cortiços” Luis Kehl – Breve história das favelas
As favelas, tal como conhecemos na atualidade, têm origem
nas grandes metrópoles do Sudeste: Rio
de Janeiro e São Paulo, respectivamente. São hoje comunidades que surgiram
por diferentes motivos, como a demolição dos cortiços ou a malsucedida lei do
inquilinato do período Vargas, que acabou com a oferta de moradia de aluguel.
Estas razões induziram um desenvolvimento urbano
responsável por levar grande parte da população à informalidade. Em geral, as
favelas apresentam grande densidade,
ilegalidade da terra, insalubridade atrelada à falta
de saneamento básico, ausência de serviços e infraestrutura
básica, e elevado índice de autoconstrução.
Estas áreas, de ocupação informal ou irregular,
frequentemente ficam alheias às instituições legais, com seus próprios mecanismos de autogestão e, às
vezes, submetidas a poderes paralelos ao Estado, sejam eles facções do tráfico
ou milícias. Nas últimas décadas presenciamos verdadeiras guerras urbanas
envolvendo as favelas: entre facções ou milícias distintas, ou entre a polícia
— ou exército — e estes poderes paralelos.
O sociólogo José Cláudio Souza Alves ainda afirma que “no
Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado”. O ciclo de violência criado prejudica milhões de
moradores, que por muitas vezes não conseguem deixar seus filhos na escola,
tampouco sair para o trabalho.
Esta situação de risco, não apenas relacionada à qualidade
da moradia e dos serviços de saúde, mas também à violência urbana, gerou ao
longo do tempo um forte estigma social
contra moradores de favela.
Condomínios dentro da comunidade de Paraisópolis, São Paulo/SP. (Foto: PAC/Flickr - Caos Planejado/Reprodução)
Controle
urbano do tráfico e das milícias
Como consequência da violência urbana das favelas,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro, surgem as milícias. Elas controlam diversos bairros, especialmente os
subúrbios.
Diferente das facções, que obtêm seus recursos de forma
quase exclusiva do tráfico de drogas, a milícia se financia por meio da extorsão, direta ou
indireta, dos negócios de determinada região, exigindo taxas impostas e
determinadas pelo próprio grupo. Todavia, algumas milícias também atuam
traficando drogas, mas essa é apenas uma de suas atividades e não o seu foco
principal.
Dado seu papel como poder paralelo de uma determinada
região urbana informal, tanto o tráfico
como as milícias têm poder de monopolizar serviços sobre determinado espaço
urbano e, às vezes, cumprir papéis tradicionalmente feitos pelo Estado. Por
exemplo, é comum que os milicianos sejam os donos do comércio na região e
principal fornecedores de serviços.
Além disso, impedem que outros comércios e serviços
funcionem no local, ganhando o mercado inteiro para si. No Rio de Janeiro o
BOPE destruiu, em 2018, uma piscina pública que tinha sido construída pelo
tráfico e, em investigação do Ministério Público, foi apontado que diversas milícias da Zona Oeste do Rio
de Janeiro controlavam até mesmo o transporte público.
Rafael Soares Gonçalves, professor do Departamento de
Serviço Social da PUC-RJ, chama alguns casos ainda de “incorporadores de novas comunidades”, onde grupos criminosos
incentivam invasões ou controlam conjuntos habitacionais, sendo responsáveis
pela precária urbanização.
Arquitetura
de fortalezas
Quando olhamos a foto de uma obra arquitetônica, geralmente
podemos avistar toda a sua fachada. O projeto arquitetônico costuma ser, na
maioria das vezes, motivo de orgulho para o proprietário do imóvel. No Brasil,
até meados do século XX, podíamos ver todos
os traços da Arquitetura apenas passando na rua. A primeira edificação
brasileira a empregar integralmente a linguagem moderna foi a casa modernista da Rua Santa Cruz, de
Gregori Warchavchik. Bem preservada até hoje, é possível, a partir da rua,
observar todas as linhas e ideias que compõe a obra — o que se confirma em seu
interior: uma obra moderna.
Contudo, atualmente, é cada vez mais difícil fazer uma
leitura sobre a Arquitetura de determinado imóvel apenas o observando da rua.
Isso ocorre porque quase todas as edificações estão cercadas por grandes muros, o que impede a visualização da edificação — efeito também dos também
chamados recuos ou afastamentos obrigatórios, implementados principalmente na
segunda metade do século XX e que estabeleceram distâncias obrigatórias entre a
edificação e a sua divisa. A Arquitetura deixou de ser apreciada por todos os
transeuntes para ficar reservada ao
proprietário, na grande maioria dos casos.
Assim, a grande transformação da cidade formal foi o início da concepção de fortalezas pelas
cidades, com casas e condomínios parecendo verdadeiras prisões, embora
mesmo o seu principal objetivo de proteção ser questionado por diversos
profissionais.
Em pesquisa do ano de 2008, 73% dos presos e
ex-presidiários entrevistados afirmaram preferir assaltar com muros altos. O certo é que a construção
de muros cada vez mais altos prejudicou a beleza da Arquitetura em nossas
cidades e contribuiu para deixar nossas ruas ainda mais desertas — uma vez que
se tornaram monótonas e hostis, sem atrativos para uma caminhada a pé de um
ponto a outro. Em estudo feito por Netto, Vargas e Saboya, chegou-se à
conclusão de que “quanto mais
‘contínuas’ forem as fachadas no quarteirão, mais pedestres tendemos a
encontrar”. Do contrário, tendemos a presenciar menos vida nas calçadas.
Os
condomínios fechados
O principal argumento utilizado para a implementação e
escolha de condomínios se dá na comodidade, praticidade e, principalmente,
segurança. De fato, a grande maioria dos moradores de condomínio fechado se
sentem seguros em seu interior, conforme destaca pesquisa de Reis. Todavia, sua
pesquisa alerta que “ruas conformadas pelos condomínios horizontais fechados
tendem a ser ruas inseguras, e parecem
favorecer a ocorrência de crimes como roubos e furtos das residências
unifamiliares adjacentes a eles, assim como roubos e furtos de pessoa. ”
Apesar da particularidade de cada cidade e região, a
tendência de aumento da criminalidade em regiões próximas a condomínios é
extensa: Jacobs, Voordt e Wegen e Newman apontam a importância de edificações visualmente permeáveis para a
segurança urbana. Além disso, o órgão Crime Prevetion Through Envirommental
Design — CPTED, dos EUA, apresenta como princípios o controle do espaço pelo
morador e a vigilância naturais dos espaços.
Em sua grande maioria, os condomínios são envoltos de
verdadeiras muralhas, seguranças, cercas elétricas e alarmes. Ou seja,
verdadeiros enclaves fortificados, conforme destaca Teresa Caldeira em “Cidade
de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo”. O principal problema dos
condomínios fechados ocorre pois eles, na maioria das vezes, não se comunicam com a cidade. O próprio entorno do condomínio
fechado costuma ficar mais perigoso, uma vez que se perdem os “olhos nas ruas”.
Assim, a população anda menos a pé e fica mais dependente do automóvel, prejudicando a vitalidade urbana como um
todo.
Além do cenário de violência, parte da popularização dos
condomínios fechados se deve ao próprio planejamento urbano, quando dificulta a
construção e acesso de moradia e escritórios em lotes reduzidos, limita o
adensamento em áreas centrais, exige recuos entre as edificações, vagas mínimas
de garagem, entre outros fatores que direcionam a forma urbana para o isolamento.
Estagnação
e abandono de bairros
Imagine duas regiões da cidade distintas, com
características semelhantes e com a segurança sendo a única diferença entre
eles. Em um, quase não ocorrem crimes violentos. No outro, há uma grande
incidência de assaltos e homicídios. É natural que o segundo sofra um
esvaziamento e consequente queda nos preços dos imóveis, por conta da relação
entre oferta e demanda. Além disso, o própria esvaziamento e abandono de muitos
imóveis em um determinado bairro podem contribuir para o aumento da violência, criando um ciclo vicioso.
Após o esvaziamento, pelo fato dessas regiões apresentarem
diversas qualidades urbanas, a tendência é que parte dos imóveis abandonados passem a ser ocupados de forma irregular.
Em São Paulo, por exemplo, temos diversos exemplos de ocupações informais
verticais em prédios abandonados, especialmente no centro da cidade.
Teoria
das janelas quebradas e o caso de Nova York
Para quem visita e conhece Nova York nos dias de hoje, fica
difícil acreditar que a realidade dos filmes dos anos 1970 e 1980, que
apresentam a cidade como um centro urbano bastante violento, não seria fruto de
um profundo exagero dos produtores de Hollywood. Entretanto, a verdade é que,
desde as décadas citadas, Nova York passou por uma profunda transformação no
que diz respeito à segurança pública. A cidade inseriu várias políticas, como o
aumento do número de policiais na cidade; uso de tecnologia e mudança da
estratégia na atuação da polícia, além da aplicação da “teoria das janelas quebradas” e a política de “tolerância zero”.
A teoria das janelas quebradas nasceu na Universidade de
Chicago. Sua ideia principal está relacionada com a degradação que determinado espaço passa a sofrer após uma primeira
pequena degradação. Um edifício, por exemplo, que tenha uma janela
quebrada, tende a ter todas as outras janelas quebradas em pouco tempo, já que
há uma percepção social de descaso. Nova York adotou a política de melhorar a
qualidade dos espaços públicos junto à visão política de “tolerância zero”, que
combatia até mesmo os crimes menores e
vistorias aleatórias em perfis suspeitos.
Fonte Talavera de La Reina, monumento de 1935, localizada em frente à Prefeitura de Porto Alegre, cercada em 2008 para conter vandalismos. (Foto: Brayan Martins/ PMPA – Caos Planejado/Reprodução)
Vale destacar que a avaliação dessa política se divide
entre especialistas. Alguns a consideram extremamente eficaz para a queda da
criminalidade em Nova York, enquanto outros destacam que ela aumentou os casos
de agressão e discriminação policial, especialmente em relação às minorias.
Além disso, o renascimento econômico de Nova York a partir dos anos 1970 contribuiu para a diminuição dos
crimes violentos: já havia iniciado um processo global de mudança de
interesse em relação
aos centros urbanos, com o exemplo clássico do início da ocupação de áreas
industriais abandonadas por artistas.
Soluções
do urbanismo para a problemática
Embora muitas vezes as soluções urbanas sejam apresentadas
como a única solução para todos os problemas existentes, sabemos que a
realidade não funciona dessa forma. Entretanto, é possível destacar que alguns
pontos são relevantes para entrar no debate, especialmente quando abordamos
sobre o que não fazer em planejamento
urbano.
O primeiro ponto é sobre as cidades construírem ambientes propícios para a prosperidade. Cidades
decadentes, como Detroit, se tornaram muito inseguras, enquanto
cidades que superaram graves crises econômicas, como Nova York, apresentam
uma boa segurança pública.
A manutenção de
espaços públicos de qualidade é outra ação que deve ser priorizada por
nossos administradores, uma vez que eles conectam a cidade, evitam a segregação
e consequente marginalização de certos redutos da cidade. Nesse sentido, seu
cercamento também não é recomendado, sendo preferível o aumento da sua conexão com a cidade.
O investimento nas necessidades
básicas do urbanismo, como saneamento,
drenagem, boas calçadas e iluminação pública infelizmente não é priorizado por
muitos gestores urbanos, que preferem obras de maior destaque, pois é o que
garante visibilidade à gestão. Quando há serviços públicos e inclusão social há
menos espaço para o domínio de grupos criminosos paralelos.
Outro ponto importante sobre a segurança nas ruas e
calçadas das nossas cidades é o incentivo
às fachadas ativas, muito comum no início do século XX, mas que foi
gradualmente se perdendo ao longo dos anos. Elas proporcionam os “olhos nas ruas”, termo criado por Jane
Jacobs que ressalta a importância da conexão entre os imóveis e a rua, pois as
pessoas atuam como verdadeiros vigilantes.
Em ruas muradas e confinadas, essa característica se perde.
O zoneamento monofuncional, os generosos recuos frontais e outros fatores do
planejamento urbano foram responsáveis pela mudança da linguagem das nossas
edificações, que passaram a ser voltadas
para o interior e não para o exterior, gerando o processo de abandono da
vida nas calçadas.
Sendo assim, a violência urbana foi responsável por moldar
nossas cidades de várias formas ao longo do século XX. Além disso, podemos
atribuir parte dessa violência como um efeito por conta de decisões equivocadas
de planejadores no passado, especialmente aquelas que inibiram o acesso à cidade formal aos menos favorecidos. Erros
do passado devem ser evitados e soluções para mitigar estes equívocos devem ser
pensadas e implementadas, para que além de uma cidade mais segura, tenhamos uma
cidade mais humana.
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