A impossível cidade policêntrica



A impossível cidade policêntrica
(Foto: Caos Planejado/Reprodução)

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Por que os projetos de “descentralizar” as cidades — distribuindo as oportunidades de trabalho e oferta de serviços em centros autossuficentes — fracassam?


O conceito de “cidade policêntrica” pode ter diferentes significados. De acordo com o urbanista Alain Bertaud, no seu texto “The Spatial Organization of Cities: Deliberate Outcome or Unforseen Consequence?” (A organização espacial de cidades: resultado deliberado ou consequência imprevista?), “cidades monocêntricas e policêntricas são animais da mesma espécie observados em diferentes tempos durante o seu processo evolucionário”. Cidades nascem monocêntricas e tendem a criar novos centros em outras localidades a medida que crescem.


No mesmo paper, Bertaud comenta, no entanto, que o crescimento de cidades policêntricas depende da unificação do seu mercado de trabalho. Ou seja, apesar de uma cidade ter outros centros, não necessariamente são autossuficientes ou eliminam deslocamentos entre eles. 



Isso nos leva a outra definição de “cidade policêntrica”, ou de “cidade descentralizada”, cujo modelo teórico Bertaud chama de “vilarejos urbanos”. Segundo este modelo, uma metrópole poderia ser policêntrica a ponto de ter vários centros autossuficientes agregados geograficamente.



Neste modelo, apesar de ser uma grande cidade, todos os deslocamentos seriam curtos, podendo caminhar ou andar de bicicleta para o trabalho, dado que empregos seriam dispersos de forma equilibrada ao longo destas múltiplas centralidades. No entanto, embora existam cidades policêntricas que seguem a primeira definição que utilizamos no artigo, o modelo de “vilarejos urbanos” não existe na realidade, embora seja defendido com frequência na política urbana mundial e brasileira. 


Uma das primeiras propostas teóricas de planejamento urbano, da “Cidade Jardim”, descrita pela primeira vez pelo inglês Ebenezer Howard em 1898, já imaginava a distribuição da cidade em pequenos núcleos autossuficientes rodeando um centro urbano maior. Este conceito, que tenta evitar aglomerações excessivas de pessoas, prevendo que moradores morem próximos do seu trabalho e empresas se estabeleçam onde há concentração de pessoas, perdura até hoje.



Diagrama da “Cidade Jardim” de Ebenezer Howard, 1898. (Imagem: Ebenezer Howard - Caos Planejado/Reprodução)



Em 2010, foi apresentado em São Paulo o plano de desenvolvimento SP2040 liderado pelo professor James Wright, a convite da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo. Segundo o jornal da USP, 


“O cenário que o projeto SP2040 desenha para São Paulo é o de uma cidade policêntrica, e esses muitos centros teriam ‘vida própria’, com serviços, trabalho e qualidade de vida para os moradores. É o que Wright chama de um ‘adensamento das regiões da cidade’, fazendo com que grandes massas de trabalhadores não precisem se deslocar diariamente e a altos custos da periferia para o centro da cidade, e, quando for necessário fazê-lo, que haja transporte público e mobilidade de qualidade.”


Esta noção já tinha sido apresentada no Plano Diretor de São Paulo em 2002 e reforçada no Plano Diretor de 2016, quando o então secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, afirmou que “nunca tornaremos as demais regiões totalmente autônomas, mas vamos minimizar, redirecionar, reequilibrar a questão da mobilidade urbana, que está passando por uma grande crise”. 



Até mesmo antes da sua implementação, o Plano Diretor de São Paulo já começava a ganhar reconhecimento e a influenciar a política urbana de outras cidades do país. Assim, quando estavam sendo discutidas as propostas do novo Plano Diretor de Belo Horizonte em 2016, a representante da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (ARMBH) já afirmava que “a grande proposta da reestruturação territorial é quebrar essa monocentricidade. Temos grande dependência do centro de Belo Horizonte. A proposta é criar uma configuração policêntrica, com centros que permitam o desenvolvimento de atividades, de moradias de uma forma equilibrada”. Essa visão se consolidou no Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte, que defende a “criação e/ou fortalecimento de centralidades urbanas em rede e abrangendo diferentes escalas espaciais”.


Tal conceito recebeu corroboração internacional pela ONU-Habitat, o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, não apenas na defesa da sua Nova Agenda Urbana de um desenvolvimento “policêntrico e equilibrado” e um “crescimento equilibrado das regiões em todo o continuum urbano-rural” mas inclusive na recomendação de valores específicos na razão entre empregos e residentes de entre 0,5 a 0,7 pessoas empregadas para cada residente em cada distrito. 


Mundo afora, a ideia ganhou ainda maior repercussão na campanha de reeleição da atual prefeita de Paris, Anne Hidalgo, com a proposta da “Cidade de 15 minutos”. Bairros se tornariam mais autossuficientes, podendo fazer todas as atividades do dia em um raio de 15 minutos. A aproximação de empregos da moradia fariam parte dessa equação.



Proposta de campanha de Anne Hidalgo para as eleições à Prefeitura de Paris de 2020. O projeto defende o fortalecimento dos bairros para que seja possível realizar todas as atividades do dia em um raio de 15 minutos. (Imagem: Anne Hidalgo/Twitter - Caos Planejado/Reprodução)



No entanto, como Alain Bertaud relata no seu livro “Order Without Design” (Ordem sem design, ainda sem publicação em português), “o modelo dos vilarejos urbanos existe apenas nas cabeças dos planejadores”.



Evidentemente, se fosse possível casar de forma “equilibrada” os moradores e seus empregos, os benefícios seriam enormes. Aliás, o fundamento desta ideia também não era muito diferente do que defendiam Le Corbusier e os urbanistas modernistas: ao prever corretamente os usos e as necessidades das pessoas seria possível promover o agradável passeio a pé pela cidade — ou estabelecer usos ótimos nos próprios edifícios — e liberar os cidadãos do “imenso desperdício moderno (meios de transporte, canalizações, tempo tomado do usuário) que devora orçamentos impossíveis e esmaga a sociedade moderna com essa carga inesperada que não passa de uma nova escravidão”.



Bertaud explica de forma bastante clara no seu livro:


“Este modelo não existe no mundo real porque ele contradiz a justificativa econômica de grandes cidades: a eficiência de grandes mercados de trabalho. O empregador não escolhe seus funcionários baseado nos seus locais de residência, nem trabalhadores especializados selecionam seus empregos baseados na proximidade da empresa.“


“Está implícito no modelo dos vilarejos urbanos uma fragmentação dos mercados de trabalho de uma grande metrópole e não faz sentido econômico no mundo real. Uma empresa que se satisfizesse em restringir a seleção dos seus funcionários às proximidades da sua fábrica ou escritório não precisaria se localizar em uma grande metrópole onde aluguéis e salários são mais altos. Esta empresa poderia estar localizada em uma pequena cidade onde os trabalhadores pouco especializados que ela busca poderiam ser recrutados por um salário mais baixo.


Da mesma forma, um trabalhador morando em uma grande cidade e procurando um novo emprego tentaria maximizar a satisfação com seu emprego em parte pelo seu salário, pelo seu nível de interesse pelo trabalho e a compatibilidade com as habilidades, a atratividade do local de trabalho e assim por diante. O tempo gasto com deslocamento para o trabalho pode certamente ser uma consideração ao procurar um emprego, mas se o tempo de viagem fosse menos de 1 hora, provavelmente não seria um fator determinante.”



Bertaud ilustra o problema com o estudo de Chang Moo Lee e Kun Hyuck Ahn sobre cinco vilarejos satélite construídos ao redor de Seul nos anos 90: Bundang, Ilsandong-gu, Pyeongchang, Sanbon-dong, e Joongdong. Criadas com o objetivo de serem autossustentáveis, o estudo mostra que, apesar de crescentemente desenvolver comércio e serviço local, permanecem economicamente atreladas e dependentes de Seul, principalmente no sentido de viagens casa–trabalho para fora das cidades satélite.


No Brasil, podemos dizer o mesmo para o que chamamos de “cidades satélite” ao redor do Plano Piloto de Brasília: na realidade não se tratam de “cidades satélite” mas sim de subúrbios ou periferias do Plano Piloto, área central de Brasília, que dependem dele economicamente, explicando os congestionamentos frequentes conectando as regiões.



Vista aérea de Brasília e suas “cidades satélite”. (Imagem: NASA’s Marshall Space Flight Center Follow/Flickr - Caos Planejado/Reprodução)


Em resumo, o fracasso das tentativas de “descentralizar” a cidade é consequência do princípio de que grandes mercados de trabalho concentrados em regiões centrais das cidades possuem ganhos de escala que não são replicáveis em células autônomas periféricas. Caso isso fosse possível, grandes cidades não apresentariam benefícios econômicos frente a um conjunto de pequenas cidades.



Qual seria, então, a estratégia de desenvolvimento urbano a ser seguida? Bertaud defende no seu trabalho o foco da gestão urbana tanto em permitir que mais pessoas morem próximas às regiões de alta atratividade econômica, possibilidade que normalmente é restrita através das suas próprias políticas urbanas, assim como um grande esforço para a gestão dos espaços públicos e redes de transporte para permitir a conectividade entre diferentes regiões da cidade, ampliando o raio de abrangência do mercado de trabalho para uma determinada região urbana. Ou seja, mesmo se a pessoa não puder morar em uma região central, devemos tentar torná-lo acessível através de soluções de mobilidade.



É claro que muitas cidades se desenvolveram de forma equivocada, separando através dos seus planos diretores as atividades residenciais e comerciais e aumentando a distância de muitos deslocamentos. No entanto, a tentativa de mudar a concentração de empregos e desequilíbrio de oportunidades será uma batalha perdida. 


Diferente do trabalho incessante (e normalmente infrutífero) de urbanistas tentarem fazer com que empresas se estabeleçam em áreas periféricas que não fazem sentido econômico, o papel do urbanismo deveria ser facilitar o acesso das pessoas às oportunidades das regiões centrais, seja possibilitando o aumento no número de moradias nessas regiões ou adaptando as redes de transporte para conseguir acessá-las. A concentração de empregos não é necessariamente um problema a ser resolvido, mas parte da natureza das cidades e uma realidade com a qual o urbanismo deve trabalhar.



Fonte:

- Caos Planejado



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